segunda-feira, 24 de maio de 2010

Admirável mundo atual por Cristóvam Buarque


MENDIXO

Antes da sociedade de apartação os mais pobres conseguiam sobreviver da mendicância. Nos anos 60, era costume doar esmolas a mendigos fixos, nos centros das cidades, ou a mendigos ambulantes, nas portas das casas. Até com certa frequência, mendigos comiam nas mesas das casas, com famílias, ou seguidas a elas. Com os apartamentos, os condomínios fechados e as casas superprotegidas, a esmola desaparece dos bairros domésticos. Nos centros das cidades, raramente é praticada porque os ricos e as classes médias ficam isoladas em seus carros e em shopping centers. No lugar da indignação moral com a pobreza, surgiu uma indignação imoral contra os pobres. Os raros mendigos, em geral com crianças ou recém nascidos, pedem esmolas em meio aos automóveis, nos sinais de trânsito e em outros pontos de passagem. Por outro lado, com a riqueza da apartação o lixo do luxo ficou mais rico, porque as camadas incluídas da sociedade consomem mais e desperdiçam mais. Surge assim um tipo novo e degradado de mendigos: os mendixos, que vivem de catar restos do lixo. Com os modernos sistemas de  lixo zero, em breve nem os mendixos terão como sobreviver desses restos.

SOCIEDADE APARTADA

É a sociedade com apartação, em que os grupos sociais se dividem em incluídos e excluídos.

CONDOMÍNIOS

Um dos símbolos da modernidade-técnica tem mais de mil anos e originou-se dos castelos, onde os nobres e seus serviçais viviam protegidos da ameaça de inimigos externos: São os condomínios fechados, apresentados como a opção mais moderna para a realização dos desejos relacionados a conforto. A vantagem dos condomínios decorre exclusivamente da insegurança em uma sociedade com exclusão; assim como os castelos medievais, os condomínios existem para proteger os ricos contra as ameaças dos pobres.(...) A situação nos dias de hoje chega ao ponto de considerar-se necessária a construção de túneis entre condomínios habitacionais e condomínios comerciais, de maneira a evitar que os habitantes do lado rico sejam obrigados a circular por ruas entre um ou outro de seus castelos modernos.

APARTAÇÃO

A palavra tem origem no latim partire, que significa dividir em partes.Com base na raiz latina, no africâner  resultou em apartheid, termo que definiu a concepção e o conjunto das normas que regularam o processo social e econômico separando a população entre brancos, negros e mestiços. Em português, a palavra apartação foi usada no sentido de separar coisas e animais no estábulo; no seu sentido social, de uma sociedade partida, separando as pessoas por classe, como o apartheid separa por raças, ela foi divulgada pela primeira vez em 1992, no livro  O colapso da modernidade brasileira e uma proposta alternativa*, outro livro, O que é apartação - o apartheid social brasileiro**, publicado em 1994, consolidou o termo de modo a substituir a expressão apartheid social, utilizada para indicar o desenvolvimento separado entre incluídos e excluídos, como no caso do Brasil, e não entre brancos e negros, como no caso da África do sul (...).

*O colapso da modernidade brasileira e uma proposta alternativa. São Paulo, Paz e Terra, 1991.
** O que é apartação - o apartheid social brasileiro.São Paulo, Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1994.

LIXO ZERO

O lixo é um dos últimos pontos de contato entre os incluídos e os excluídos, como um elo resistente. Os trabalhos de Marcel Bursztyn, da Universidade de Brasília, mostram que, nos dias de hoje, a coleta de lixo é o principal atrativo para a maior parte dos imigrantes que se dirigem às grandes cidades do Brasil, diferentemente do período que se estendeu até os anos 70, quando os imigrantes chegavam à cidade em busca de emprego. Descontentes com a proximidade desses catadores, em muitas dessas cidades já há restaurantes, casas e lojas que cercam seus lixos para evitar que os catadores tenham acesso a eles. Além disso, a  modernidade criou instrumentos técnicos que eliminam o lixo. São equipamentos que destroem os resíduos, reciclam automaticamente o que tem utilidade, transformam outra parte em energia e dissolvem o que não pode ser reciclado. Com a generalização desse sistema, desaparecerá uma das últimas formas de contato entre os ricos e o pobres.

ADMIRÁVEL MUNDO ATUAL

Publicado em 1932 pelo escritor e crítico inglês Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo se trasnformou em um símbolo do pessimismo social para o século XX. No novo mundo tecnificado, os homens estariam divididos em grupos biológicos - e não apenas em grupos sociais -, produzidos para o desempenho eficiente em tarefas específicas. O livro foi considerado literatura de horror social, sem nexo com a realidade do potencial utópico da civilização. O final do século XX comprova, porém, que o horror social de Huxley se mostrou aquém da realidade que está em marcha com a construção da apartação biológica. O quadro de exclusão socia está gerando um admirável mundo atual ainda mais perverso do que o formulado pela imaginação de Huxley. O que acontece no planeta hoje é um horror diferente, mas não menor do que o descrito por Huxley sete décadas atrás.